No final de maio, o governo do Estado de São Paulo anunciou a privatização de três hospitais públicos conhecidos por atendimentos de alta complexidade: Ipiranga, Heliópolis e Darcy Vargas. Essa medida gerou surpresa entre os profissionais de saúde, pois, se nada mudar, esses hospitais serão administrados por organizações sociais (OSs). Esse tipo de privatização não é uma novidade, sendo uma prática que se intensifica desde a década de 80 e que, nos últimos anos, ganhou força.
Um levantamento do Sindicato dos Médicos de São Paulo, realizado em junho de 2023, revelou que, dos 42 hospitais estaduais na capital e Grande São Paulo, 81% já estão sob a administração de entidades que se dizem “filantrópicas”. A justificativa para essa transição é a busca por uma gestão mais eficiente e econômica. No entanto, a realidade mostra o contrário: esse modelo tende a comprometer a qualidade do atendimento e a segurança dos pacientes. A escolha das OSs se dá por meio de licitações, onde quem oferece o menor preço ganha o contrato, mas frequentemente isso ignora questões fundamentais para a prestação de um serviço de saúde adequado, especialmente em hospitais que lidam com casos complexos.
A privatização traz à tona problemas como a substituição de equipes de profissionais qualificados por trabalhadores contratados de forma precária. Isso resulta em alta rotatividade, perda de talentos e equipes instáveis, o que é essencial para garantir a segurança no cuidado aos pacientes. Em hospitais que atendem casos graves, essa situação se torna ainda mais crítica, pois a falta de uma política de formação e estabilidade propicia a contratação de médicos recém-formados que podem não estar prontos para lidar com situações de alta complexidade. Isso aumenta o risco de erros que podem colocar em risco a saúde dos pacientes. Importante destacar que a responsabilidade por essa situação não deve recair apenas sobre as equipes médicas, mas sim sobre a gestão que prioriza cortes de custos em vez da qualidade do atendimento.
Um estudo do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo comparou a gestão de saúde pública por organizações sociais com a administração direta e chegou a algumas conclusões preocupantes. Os custos das OSs, por exemplo, são mais altos, os pacientes passam mais tempo sozinhos nos leitos, e a taxa de mortalidade é superior. Além disso, há uma diferença salarial crescente entre os trabalhadores; enquanto os líderes ganham mais, os colaboradores menos remunerados recebem salários menores do que seus colegas em hospitais públicos. Os dados mostram que os hospitais sob gestão de OSs custam cerca de R$ 60 milhões a mais do que aqueles administrados diretamente pelo Estado, apresentando um desempenho 38,5% menos eficaz. O custo de um leito nas OSs é 17,6% maior em comparação aos hospitais públicos.
Casos específicos já mostram os impactos desse modelo. Um estudo sobre a gestão das UTIs no Instituto de Infectologia Emílio Ribas durante a pandemia revelou que a mortalidade era duas vezes maior em leitos terceirizados se comparados aos da UTI da instituição. Além disso, houve um aumento de cinco vezes no uso de tratamentos ineficazes, como a hidroxicloroquina, nos leitos terceirizados, o que indica falhas na supervisão clínica e na gestão das equipes.
Outro ponto crítico é a deterioração das condições de trabalho dos profissionais da saúde. A terceirização fragmenta as carreiras e dificulta a formação de vínculos duradouros, impactando a qualidade do atendimento. Um estudo indicou que esse modelo de gestão privado leva a uma maior rotatividade, menor qualificação e descontinuidade no atendimento. A falta de fiscalização apropriada agrava a situação, criando uma “caixa-preta” na administração dos recursos públicos e comprometendo a transparência.
Apesar dos problemas evidenciados, o modelo de gestão por OSs continua a ser expandido, não apenas em São Paulo, mas como um exemplo seguido por outras gestões estaduais, como no Rio de Janeiro. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, foi convocado para uma audiência pública no Ministério Público do Trabalho, em junho, para discutir os impactos da privatização sobre os servidores concursados que atuam nos três hospitais mencionados. No entanto, ele não compareceu, nem enviou representantes, o que gerou insatisfação entre os profissionais da área e evidenciou uma falta de diálogo com a categoria.
É fundamental que a busca por eficiência não coloque em risco a qualidade do atendimento e as condições de trabalho dos profissionais da saúde. A comunidade deve se mobilizar para exigir que a qualidade dos serviços e a segurança dos pacientes sejam prioritárias nas decisões sobre a saúde pública, em vez de um foco apenas na redução de custos, que muitas vezes se mostra insustentável. A vida humana deve ser sempre a principal consideração nas decisões administrativas do setor.
